O que é violência? Quem a define? Ela tem um lugar na busca por libertação? Estas questões antigas voltaram à tona durante o movimento Occupy de 2011, nas Jornadas de Junho de 2013 e agora nos levantes contra violência policial dos EUA ao Brasil, e contra o neoliberalismo do Chile à Tunísia. Mas essa discussão nunca se dá em condições de igual para igual; enquanto alguns deslegitimam a violência, a própria linguagem da legitimidade prepara o caminho para que as autoridades façam uso de meios violentos.
“Embora linhas de policiais em cima cavalos e com cães, atravessassem a rua principal fora da delegacia policial para dispersar os manifestantes, houve vários bolsões de violência que a polícia não conseguiu alcançar.”
– The New York Times, cobrindo as manifestações de agosto de 2011 no Reino Unido
Durante o encontro da ALCA em 2011 em Quebec, um jornal destacadamente noticiou que a violência teve início quando manifestantes começaram a jogar bombas de gás de volta às linhas de policiais. Quando as autoridades são vistas como possuindo um monopólio do uso legítimo da força, “violência” é um termo frequentemente usado para denotar o uso ilegítimo da força – qualquer coisa que interrompa ou fuja do controle das autoridades. Isto transforma o termo “violência” quase em um significante flutuante, uma vez que também é entendido como significando “dano ou ameaça não consentida.”
Isto se complica ainda mais pelas formas através das quais nossa sociedade se baseia e é permeada por danos ou ameaças não consentidas. Neste sentido, não é violento viver em território colonizado, destruir ecossistemas através de nosso consumo diário e beneficiar-se de relações econômicas forçadas sobre os outros à mão armada? Não é violento que guardas armados mantenham comida e terra, um dia bens comuns compartilhados por todos, fora do alcance daqueles que mais precisam deles? É mais violento resistir à polícia que expulsa pessoas de suas casas, ou permanecer em silêncio enquanto são criados mais sem-teto? É mais violento jogar bombas de gás de volta na polícia, ou acusar aqueles que os jogam de “violentos”, dando justificativas para que a polícia faça pior?
Em um cenário desses, não existe nada que possa ser chamado de não-violência – o mais próximo que podemos chegar é negar o dano ou ameaça imposto pelos defensores da violência de-cima-pra-baixo. E quando tantas pessoas se beneficiam dos privilégios que esta violência lhes garante, é inocente pensar que poderíamos defender a nós e a outras pessoas menos favorecidas sem violar os desejos de ao menos alguns banqueiros e rentistas. Então em vez de questionar se determinada ação é ou não violenta, seria melhor perguntar apenas: esta ação contrapõe-se a disparidades de poder, ou as reforça?
Esta é a pergunta anarquista fundamental. Podemos fazê-la em toda situação; toda questão posterior sobre valores, táticas e estratégia procede dela. Quando a questão pode ser colocada dessa forma, por que alguém iria querer puxar o debate de volta para a dicotomia entre violência e não-violência?
O discurso de violência e não-violência é atrativo acima de tudo pois oferece uma forma fácil de reivindicar superioridade moral. Isto torna este discurso sedutor tanto para criticar o estado e para competir por influência com outros ativistas. Mas em uma sociedade hierárquica, ganhar a superioridade moral muitas vezes reforça a própria hierarquia.
Legitimidade é uma das moedas mais desigualmente distribuídas em nossa sociedade e, através dela, suas disparidades são mantidas. Definir pessoas ou ações como violentas é uma forma de excluí-las do discurso legítimo, de silenciar e se fechar. Isto se assemelha a e reforça outras formas de marginalização: uma pessoa branca e rica pode agir de forma “não-violenta” de formas que seriam vistas como violentas se cometidas por um indivíduo preto e pobre. Em uma sociedade desigual, a definição de “violência” não é mais neutra que qualquer outra ferramenta.
Definir pessoas ou ações como violentas também tem a consequência imediata de justificar o uso de força contra elas. Este tem sido um passo essencial em praticamente toda campanha voltada contra a comunidades marginalizadas racialmente, movimentos de protesto, e outros do lado errado do capitalismo. Se você já participou de manifestações o suficiente, você sabe que é muitas vezes possível anticipar exatamente quanta violência a polícia vai usar contra um ato pela forma que a história é apresentada nas notícias na noite anterior. Desta forma, a mídia e mesmo ativistas rivais podem participar no policiamento ao lado da polícia, determinando quem é um alvo legítimo pela forma que se constrói a narrativa dos fatos.
No aniversário de um ano do levante egípcio, o exército revogou a legislação de emergência – “exceto em casos envolvendo marginais.” A revolta popular de 2011 havia forçado as autoridades a legitimar formas anteriormente inaceitáveis de resistência: Obama chegou a caracterizar de “não-violenta” uma revolta em que milhares luteram contra a polícia e queimaram delegacias. Para re-legitimar o aparato legal da ditadura, era necessário criar uma nova distinção entre “marginais” violentos e o resto da população. Mas o fundamento desta distinção nunca foi explicitada; na prática, “marginal” é simplesmente a palavra usada para designar alguém atingido pela própria legislação de emergência. Do ponto de vista das autoridades, idealmente o próprio uso da violência seria suficiente para rotular suas vítimas como violentas, ou seja, como alvos legítimos.1
Então quando uma parcela grande o suficiente da população pratica resistência, as autoridades têm de redefini-la como não-violenta, ainda que tais ações fossem antes consideradas violentas. Não fosse assim, a dicotomia entre violência e legitimidade se desfaria – e sem tal dicotomia, seria muito mais difícil justificar o uso de força contra aqueles que ameaçam o status quo. No mesmo sentido, quanto mais abrirmos espaço na discussão sobre o que permitimos que as autoridades definam como violento, mais elas irão incluir nessa categoria, e maior será o risco que todos nós iremos correr. Uma consequência das últimas décadas de disobediência civil que se auto-denomina “não-violenta” é que algumas pessoas consideram até levantar a voz como um ato violento; isto permite retratar como “marginais violentos” aqueles que tomam as mínimas providências para se proteger da polícia.
cdn.crimethinc.com/images/violence/2b.jpg
“Os indivíduos que formaram uma corrente com seus braços e ativamente resistiram – isto por si só é um ato de violência … dar os braços uns aos outros em uma corrente humana após uma ordem de dispersão não é um protesto não-violento.”
— Capitão Margo Bennett, guarda universitário, citado no The San Francisco Chronicle, justificando o uso de força contra estudantes na Universidade da Califórnia em Berkeley
As Ferramentas do Mestre: Deslegitimação, Deturpação e Divisão
Repressão violenta é apenas uma parte da estratégia usada para suprimir movimentos sociais. Para que esta repressão tenha sucesso, é preciso dividir os movimentos em legítimos e ilegítimos, e então convencer os primeiros a repudiar os últimos – muitas vezes em troca de privilégios e concessões. Podemos ver este processo em primeira mão nos esforços de jornalistas profissionais como Chris Hedges e Rebecca Solnit em demonizar rivais no movimento Occupy.
Em seu artigo Throwing Out the Master’s Tools and Building a Better House: Thoughts on the Importance of Nonviolence in the Occupy Revolution,” (Jogando Fora as Ferramentas do Mestre e Construindo Uma Casa Melhor: Reflexões Sobre a Importância da Não-violência na Revolução do Occupy) Rebecca Solnit misturou argumentos morais e estratégicos contra “violência,” adotando uma forma de excepcionalismo estadunidense: Zapatistas podem pegar em armas e rebeldes egípcios podem por fogo em prédios, mas não podemos deixar nem uma lixeira pegar fogo nos EUA.
Solnit deveria saber que a definição de violência não é neutra: em seu artigo “The Myth of Seattle Violence,” ela narrou sua tentativa frustrada de tentar fazer com que o New York Times deixasse de representar como “violentos” os protestos contra o encontro da OMC em 1999 em Seattle. Através da repetida ênfase da violência como sua categoria central de análise, Solnit reforça a efetividade de uma das ferramentas que inevitavelmente serão utilizadas contra manifestantes – incluindo ela – sempre que servir aos interesses dos poderosos.
Solnit manifesta especial desaprovação por aqueles que defendem a diversidade de táticas como uma forma de impedir a divisão de movimentos. Vários parágrafos de seu “Throwing Out the Master’s Tools” são dedicados a criticar o panfleto “Dear Occupiers”(“Queridas Ocupantes”) do coletivo CrimethInc. Solnit considerou-o um “grito pela justificação da violência,” ou ainda “machismo vazio temperado de insultos”, e partiu para ataques ad hominem contra autoras sobre os quais ela reconhecidamente não sabia nada.2
Como qualquer um pode facilmente constatar, a maioria de “Dear Occupiers” simplesmente revisa os problemas sistêmicos com o capitalismo; a defesa da diversidade de táticas limita-se a só uns dois parágrafos. Por que uma autora premiada retratá-lo como um grito pró-violência?
Talvez seja por esta mesma razão que Solnit una-se às autoridades para deslegitimar a violência mesmo quando isto acaba por ajudar as autoridades a deslegitimar os próprios esforços de Solnit: sua influência em movimentos sociais e seus privilégios na sociedade capitalista baseiam-se ambos na distinção entre legítimo e ilegítimo. Se movimentos sociais um dia parassem de ser geridos de cima pra baixo – se eles parassem de se policiar – os Hedges e Solnits (e Villalvas, e Bonfims, e Boulos, e vários outros). do mundo ficariam literal e figurativamente desempregados. Isso explica porque eles percebem como seus piores inimigos aqueles que moderadamente aconselham contra a divisão de movimentos entre facções legítimas e ilegítimas.
É difícil imaginar que Solnit teria representado o “Dear Occupiers” como ela fez se ela esperasse que seu público lesse o texto original. Dado seu público, trata-se de uma aposta segura – Solnit é frequentemente publicada na mídia corporativa, enquanto textos da CrimethInc são distribuídos apenas por redes comunitárias [grass-roots networks]; de qualquer forma, ela nem incluiu um link. Chris Hedges agiu de forma similar em seu notório “The Cancer in Occupy”, uma série de absurdas generalizações sobre “anarquistas black blocs.” Parece que o objetivo de ambos os autores é silenciar: por que você iria querer ouvir o que essas pessoas têm a dizer? Elas são marginais violentos.
O título do artigo de Solnit faz referência ao influente texto de Audre Lorde intitulado “The Master’s Tools Will Never Dismantle the Master’s House.” seu texto não era uma apologia à não-violência; mesmo Derrick Jensen, que Hedges cita favoravelmente, já combateu tal uso incorreto desta citação. Aqui, basta repetir que a mais poderosa das ferramentas do mestre não é a violência, mas a deslegitimação e a divisão – como Lorde enfatizou em seu texto. Para defender nossos movimentos contra tais ferramentas, Lorde afirma:
“A diferença não deve ser meramente tolerada, mas vista como um fundo de polaridades necessárias entre as quais nossa criatividade pode florescer… Apenas dentro desta interdependência de diferentes forças, reconhecidas e iguais, poderá ser encontrado o poder de buscar novas formas de ser no mundo, bem como a coragem e a sustentação para agir quando não há guias.”
Se queremos sobreviver, isso significa:
“…aprender a resistir sozinho, na impopularidade e por vezes insultado, e a como encontrar causas em comum com os outros identificados como excluídos das estruturas de forma a definir e buscar um mundo em que todos possamos nos desenvolver… aprendendo como transformar nossas diferenças em forças. Pois as ferramentas do mestre jamais demolirão a casa do mestre.”
É especialmente vergonhoso que Solnit cite o argumento de Lorde contra o silenciamento de maneira descontextualizada para deslegitimar e dividir. Mas talvez nós não deveríamos nos surpreender quando profissionais de sucesso criticam [sell out] pobres anônimos: eles têm que defender seus interesses de classe, ou acabar por se juntar a nós. Pois os mecanismos que treinam pessoas para posições de influência dentro de hierarquias ativistas e da mídia liberal também não são neutros; eles recompensam a docilidade, muitas vezes apelidada de “não-violência,” invisibilizando aqueles cujos esforços realmente ameaçam o capitalismo e a hierarquia.
O Engodo da Legitimidade
Quando queremos que nos levem a sério, é tentador reivindicar legitimidade da forma que pudermos. Mas se não queremos reforçar as hierarquias de nossa sociedade, devemos ter cuidado para não validar formas de legitimidade que as perpetuam.
É fácil reconhecer como isso funciona em algumas situações: quando avaliamos pessoas com base em suas credenciais acadêmicas, por exemplo, isto prioriza conhecimento abstrato sobre experiência vivida, centralizando aqueles que têm uma chance na academia e marginalizando todas as outras. Em outros casos, isso acontece mais sutilmente. Enfatizamos nosso status como militantes sociais, deixando implícito que aquelas que não podem abrir mão do tempo ou recursos para tais ocupações têm menos qualificação para falar. Reivindicamos credibilidade como membros de longa data de uma comunidade, implicitamente deslegitimando quem não é – incluindo imigrantes que foram forçadas a morar conosco porque suas regiões de origem foram destruídas por processos que gerados, muitas vezes, em nossas regiões. Justificamos nossas dificuldades com base em papéis na sociedade capitalista – como estudantes, trabalhadores, contribuintes, cidadãos – sem nos darmos conta de quão difícil isso torna essa mesma justificação para quem é não tem emprego, moradia ou sofre outras formas de exclusão.
Com frequência nos surpreendemos com a reação contrária resultante. Políticos questionam nossos companheiros com o mesmo vocabulário que popularizamos: “Estes não são ativistas, são moradores de rua fingindo ser ativistas”. “Nós não estamos atacando comunidades negras, estamos protegendo-as dos criminosos”. Mas nós é que preparamos o caminho para isso ao fazermos uso de um discurso que torna a legitimidade algo condicional.
Quando enfatizamos que nossos movimentos são e devem ser não-violentos, estamos fazendo a mesma coisa. Isto cria um Outro que está fora da proteção de qualquer legitimidade que nós tenhamos ganhado – ou seja, um alvo legítimo da violência. Qualquer pessoa que tire suas companheiras das garras da polícia em vez de aguardar passivamente sua própria prisão – qualquer um que faz escudos para se proteger de balas de borracha para não deixar as ruas sob o controle policial – qualquer um que é acusado de desacato à autoridade ao ser agredido por uma autoridade: todos essas infelizes são jogadas aos lões como sendo as violentas, as maçãs podres. Aqueles que precisam usar máscaras mesmo em atos legais em virtude de terem um emprego precarizado ou por serem imigrantes são expostos como o câncer no movimento, traídos em troca de algumas migalhas de legitimidade dos poderes estabelecidos. Nós, Cidadãos de Bem, podemos nos dar ao luxo de sermos completamente transparentes; nós jamais cometeríamos um crime ou abrigaríamos um criminoso em potencial em meio a nós.
E o processo de tornar alguém nesse “outro” violento, prepara o caminho para a violência contra o “outro”. Aquelas que sofrem as piores consequências desse processo não são os mimados de classe média tão xingados na internet, mas as mesmas pessoas que estão sempre do lado errado de toda outra linha divisória do capitalismo: os pobres, os marginalizados, aqueles sem credenciais, nenhuma instituição pode defendê-los, nenhum incentivo para jogar numa política desigualmente favorável às autoridades e talvez alguns ativistas oportunistas.
Simplesmente deslegitimar a violência não acabará com ela. As disparidades em nossa sociedade não seriam mantidas sem elas, e os desesperados sempre responderão assim atuando, especialmente quando sentirem que forem abandonados ao seu destino. Mas este tipo de deslegitimação pode criar um grande abismo entre os irritados e os moralmente superiores, os “irracionais” e os racionais, os violentos e os sociais. Nós vimos as consequências disto nas revoltas no Reino Unido em 2011, quando muitos dos marginalizados, cansados de tentar se melhorar por quaisquer meios legítimos, travaram uma guerra privada contra a propriedade, a polícia, e o resto da sociedade. Alguns deles já haviam tentado participar em movimentos populares, mas foram estigmatizados como baderneiros (ou hooligans); de forma nem um pouco surpreendente, seu movimento tomou um caráter antissocial, resultando em cinco mortes e uma maior alienação deles dos outros setores da população.
A responsabilidade por esta tragédia não é apenas dos próprios rebeldes, ou daqueles que impuseram sobre eles as injustiças que eles sofreram, mas também sobre os ativistas que os estigmatizaram em vez de incluí-los na criação de um movimento que poderia canalizar sua raiva. Se não há conexão entre aqueles que pretendem transformar a sociedade e aqueles dentro desta que mais sofrem, nenhuma causa comum entre os esperançosos e os enraivecidos, então quando os últimos se revoltam, os primeiros os rejeitam, e os últimos são esmagados juntos com qualquer esperança de mudança real. Nenhum esforço para negar a hierarquia pode ter sucesso ao mesmo tempo em que excluir os marginalizados, os Outros.
Qual deveria ser a base para legitimidade, então, se não nosso comprometimento com a legalidade, a não-violência, ou qualquer outro padrão que deixa de fora nossos companheiros? Como explicamos o que estamos fazendo e por que temos o direito de fazê-lo? Devemos cunhar e circular uma moeda que não é controlada por nossos governantes, que não crie Outros.
Como anarquistas, sustentamos que nossos desejos e bem-estar e aqueles de nossos pares são a única base significativa para ação. Em vez de classificar ações como violentas ou não-violentas, focamos em sua capacidade de extender ou diminuir a liberdade. Em vez de insistir que somos não-violentos, enfatizamos a necessidade de interromper a violência inerente ao governo de cima para baixo. Isto pode ser inconveniente para aqueles acostumados a buscar diálogo com os poderosos, mas é inevitável para todos que realmente queiram abolir o poder em si.
Conclusão: de Volta à Estratégia
Mas como interrompemos a violência do governo de cima para baixo? Os partidários da não-violência colocam seu argumento em termos estratégicos e morais: violência aliena as massas, impedindo que consigamos construir o “poder popular” de que precisamos para ter sucesso.
Há um pouco de verdade no fundo disso. Se a violência for compreendida como uso ilegítimo da força, tal argumento pode ser visto como uma tautologia: atos deslegitimados são impopulares.
De fato, aqueles que tomam a legitimidade da sociedade capitalista como algo dado estão fadados a ver qualquer um que toma providências materiais para contrapor suas disparidades como violento. O desafio à frente de nós, então, está em como legitimar formas concretas de resistência: não com base em sua não-violência, mas com base em seu caráter libertador, em sua capacidade de satisfazer necessidades e desejos reais.
Não é uma tarefa fácil. Mesmo quando apaixonadamente acreditamos no que estamos fazendo, se não for algo reconhecido amplamente como legítimo, tendemos a não saber nos explicar muito bem. Se ao menos pudéssemos permanecer dentro dos limites que nós são impostos dentro deste sistema enquanto tentamos derrubá-lo! O movimento Occupy foi caracterizado por tentativas de fazer justamente isso – cidadãos insistindo em seu direito de ocupar parques públicos com base em interpretações obscuras de lacunas legais, fazendo justificativas tortuosas tão pouco convincentes para passantes quanto para as autoridades. As pessoas querem remediar as injustiças ao nosso redor, mas em uma sociedade altamente regulada e controlada, há tão pouco que elas se sentem no direito de fazer.
Solnit pode estar certa ao dizer que a ênfase na não-violência foi essencial para o sucesso inicial do Occupy Wall Street: as pessoas queriam alguma garantia de que elas não teriam de deixar suas zonas de conforto, e que o que elas estavam fazendo faria sentido para todas as outras pessoas. Mas frequentemente ocorre que as pré-condições para um movimento se tornam limitações que ele precisa superar: o Occupy Oakland permaneceu vibrante após as outras ocupações se esvaziaram porque foi um movimento que abraçou uma diversidade de táticas, não apesar disto. Da mesma forma, se realmente queremos transformar nossa sociedade, não podemos permanecer sempre dentro dos estreitos limites do que as autoridades consideram legítimo: temos de estender o leque do que as pessoas se sentem no direito de fazer.
cdn.crimethinc.com/images/violence/3b.jpg
Toda a cobertura midiática do mundo não irá nos ajudar se nós falharmos em criar uma situação em que as pessoas se sentem no direito de defender a si mesmas e umas às outras.
Legitimar a resistência, expandir o que é aceitável, não serão coisas populares no começo – nunca é, precisamente por causa da tautologia explicada acima. É preciso esforço contínuo para alterar o discurso: calmamente enfrentando a indignação e recriminações, e humildemente enfatizando nossos próprios critérios de legitimidade.
Considerar que este desafio vale a pena depende de nossos objetivos de longo prazo. Como David Graeber pontou, conflitos sobre objetivos frequentemente se ocultam sob diferenças morais e estratégicas. Tornar a não-violência o principal mote de nosso movimento faz bastante sentido se nosso objetivo a longo prazo não é questionar a estrutura fundamental de nossa sociedade, mas criar um movimento de massas que pode deter a legitimidade como definida pelos poderosos – e que esteja preparado para policiar a si mesmo. Mas se realmente queremos transformar nossa sociedade, temos de transformar o discurso da legitimidade, não apenas nos posicionar bem dentro dele da forma que existe hoje. Se focarmos apenas neste último objetivo, vamos descobrir nossas bases de legitimidade fugindo de nosso controle o tempo todo, bases que muitos daqueles com os quais precisamos achar causas em comum jamais poderão compartilhar conosco.
É importante discutir estratégia: ultrapassar o discurso de não-violência não implica em apoiar cada vidraça quebrada como uma boa ideia. Mas tais debates só ficam perdidos quando dogmatistas insistem que todos os que não compartilham de seus objetivos e suposições – para não dizer seus interesses de classe! – não têm senso de estratégia. Também não é estratégico focar em deslegitimar os esforços uns dos outros em vez de coordenar ações conjuntas dentro do que temos em comum. Este é o ponto de defendeosr uma diversidade de táticas: construir um movimento que tenha espaço para todos nós, mas que não deixa espaço para dominação e silenciamento – um “poder popular” que pode tanto expandir quanto se intensificar.
“Aqueles que dizem que a revolução egípcia foi pacífica não viram os horrores que a polícia causou a nós, nem a resistência e a força que os revolucionários usaram contra a polícia para defender suas ocupações provisórias e seus espaços: pelas estimativas do próprio governo, 99 delegacias foram incendiadas, milhares de viaturas foram destruídas, e todos os escritórios do partido governante no Egito foram queimados. Barricadas foram levantadas, soldados foram agredidos e quando pessoas revidaram contra-atacando com pedras mesmo quando jogavam bombas de gás e munição letal contra nós… se o Estado tivesse desistido imediatamente, teríamos ficado muito felizes, mas à medida que eles buscavam abusar de nós, nos bater em e nos matar, sabíamos de que não haveria outra opção senão revidar.”
– Declaração de solidariedade do Cairo para Ocuppy Wall Street, 24 de outubro de 2011
Para Ler Mais
-
Bem-vindas às Linhas de Frente: Além da Violência e da Não-violência – por coletivo Chuang
-
Nenhuma Paz Vai nos Proteger - O Discurso da Não-violência no Brasil pós-2013
-
Como a não-violência Protege o Estado – livro de Peter Gelderloos analisando o fracasso da não-violência enquanto movimento social no mundo todo.
-
Historicizing “Violence”: Thoughts on the Hedges/Graeber Debate
-
Perceba como a polícia rotineiramente acusam as pessoas detidas por qualquer tipo de violência que tenha sido usada contra elas. ↩
-
Ao que consta, embora Solnit alega que “não parecemos preparadas para agir”, as autoras de “Dear Occupiers” e deste texto são todos participantes veteranas de movimentos sociais, a maioria dos quais vive bem abaixo da linha de pobreza, longe das Mecas progressistas como a dela em São Francisco. Este assunto nos toca muito perto de casa: vários de nós enfrentamos acusações forjadas de motim – um por atuar como um contato público durante uma manifestação anti-gentrificação, outro por ser abordada pela polícia durante uma marcha de rua – e muitos de nós temos queridos amigos na prisão. Escolhemos escrever anonimamente em parte porque, não sendo jornalistas profissionais, não podemos contar que nossos patrões não nos demitam por nossas crenças políticas, e também porque essas crenças atraem mais atenção hostil das autoridades do que as de Solnit ou Hedges, mas acima de tudo porque não buscamos construir carreiras ou fama pessoal em nossos esforços para mudar o mundo. ↩