Do Punk à Solidariedade Indígena

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Quatro Décadas de Anarquismo no Brasil - Uma Entrevista

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Na entrevista a seguir, dois anarcopunks de longa data narram o ressurgimento do anarquismo no Brasil após o fim da ditadura militar, traçam a sorte dos movimentos sociais através da ascensão e queda do governo de esquerda do PT e descrevem a situação de povos guaranis e os esforços de solidariedade indígena sob o regime de extrema direita de Bolsonaro hoje.

Andreza e Josimas estiveram envolvidos com anarquismo e ativismo por várias décadas – tocando em bandas, organizando eventos e lançando discos, zines e livros. Josimas foi um dos fundadores da Germinal (2000) e Andreza participou da fundação do Espaço Improprio (2003), dois importantes centros sociais geridos por coletivos anarquistas em São Paulo, além do Carnaval Revolução (2002 - 2008), um dos maiores encontros anarquistas e contraculturais do Brasil. Josimas já tocou nas bandas Execradores, Metropolixo, Clangor, Diskontroll e Amor, protesto e ódio. Andreza já tocou em Skirt, One Day Kills, Out of Season e Retórica. Além disso, eles tocaram juntos nos grupos Você Tem que Desistir e TuNa.

Seus projetos atuais incluem o Semente Negra, um projeto ecológico na Mata Atlântica e a locação do Cultive Resistência, um coletivo que promove a cultura faça-você-mesmox, permacultura, anarquismo, punk, feminismo , antirracismo, veganismo, questões LGBTQIA+ e direitos indígenas; No Gods No Masters, uma distribuição e um festival anual que recebe anarquistas, punks e povos indígenas de todo o mundo; e Vivência na Aldeia, projeto de solidariedade indígena com nove anos de duração.

Entrada do espaço Semente Negra, projeto ecológico na Mata Atlântica. “A partir daqui, estaremos compartilhando espaço com muitos outros seres vivos. Animais e plantas interagem e dependem uns dos outros. Cuide! Não destrua.”


Na década de 1980, quando o anarcopunk surgiu no Brasil, que legado restou das primeiras gerações do anarquismo brasileiro? Quão significativo foi isso no renascimento do anarquismo no Brasil nas décadas de 1980 e 1990?

A movimentação anarcopunk no Brasil surgiu no final dos anos 80 com uma politização mais efetiva dentro do movimento punk em geral. No Brasil sempre houveram muitas gangues punks e muita violência e isto criou a necessidade de uma politização mais contundente. No meio dos anos 80, ainda durante a ditadura militar, alguns grupos anarquistas voltaram a se organizar e alguns punks decidiram se envolver com estes grupos. Tínhamos o núcleo pró COB (Confederação Operaria Brasileira) e nestes grupos já estavam alguns punks. Mas foi com a volta do Centro de Cultura Social, que foi perseguido e fechado durante a ditadura militar, que estes jovens punks encontraram uma referência. Os mais velhos e velhas do CCS reabriram em 1985 com muita força de vontade e organizando diversas atividades de politização e cultura anarquista, além de uma biblioteca com muitos livros e jornais anarquistas o que serviu de base para uma aproximação muito forte entre a cultura punk e o anarquismo.

Contra o militarismo — o movimento anarcopunk.

Punks Antimilitaristas punks em Belo Horizonte.

Quando velhos anarquistas voltaram às ruas depois da ditadura militar, e punks se aproximaram houveram muitas discussões sobre quem eram estes jovens periféricos com roupas e cabelos estranhos e suas músicas barulhentas. Alguns dos anarquistas mais velhos, principalmente, Jaime Cuberos (1926 – 1998) que via os punks como “os novos anarquistas”, foi uma inspiração e uma fonte de aprendizado muito importante para esta geração de punks que buscavam uma luta social que ia além da rebeldia.

Dois encontros punks libertários1 aconteceram no Brasil entre 1989 e 1990 unindo punks que já se identificavam com o anarquismo. No começo dos anos 1990 surgiu o Movimento Anarco Punk (MAP) principalmente em São Paulo e Rio de Janeiro, mas logo também em cidades do nordeste. A necessidade de se organizar coletivamente e de forma federativa perante uma situação política fruto da ditadura militar, com uma situação social horrível e com inflação mensal chegando a 140%, havia uma necessidade de organização e luta muito presente na juventude — e muito disto estava em uma parcela dos punks brasileiros.

Transmissão intergeracional: punks e o veterano anarquista Jaime Cuberos em Santos, 1993.

Em pouco tempo havia um coletivo Anarco punk na maioria das grandes cidades brasileiras e em muitas cidades menores também. Muitas bandas surgiram nesta época também. Estes coletivos dialogavam entre si e se organizavam para escrever artigos, organizar manifestações, concertos, debates e grupos de estudos.

Com o tempo, alguns destes grupos se aproximaram de outras lutas sociais como luta antirracista, feminismo, grupos sociais antifascistas entre outros

É importante dizer que o anarcopunk no Brasil sempre foi uma definição politica e não um estilo musical. As bandas anarco punks, no Brasil, são formadas por pessoas que estão envolvidas na luta anarquista e no punk.

Congresso Anarcopunk, Rio de Janeiro, 1995.

Anarquistas e punks em Belo Horizonte na década de 1990 em ato contra homofobia.

O punk assumiu uma forma diferente no Brasil por causa das formas que o contexto racial e colonial difere da Europa?

Sim, o começo do punk no brasil surgiu como uma contestação social em meio a uma ditadura militar. No Brasil, mais de 60% das pessoas são negras e o punk surgiu nas periferias, onde 85% são negras. Nesse cenário, onde a juventude negra da periferia e jovens pobres e sem expectativa ou qualidade de vida, não havia programas sociais ou culturais que dessem a juventude algo onde se apoiar. A violência nesta época era muito forte, fazendo com que a luta anarquista caminhasse de mãos dadas com a luta por sobrevivência.

Este é um panorama muito peculiar e não é visto normalmente em países onde as pessoas tem mais qualidade de vida como na Europa. No Brasil, o punk surge como uma reposta rebelde a uma opressão do estado, como uma luta de sobrevivência e uma alternativa cultural e isto é típico de países da América Latina. Países que foram invadidos, explorados, povoados por povos escravizados e que tem diferenças sociais e econômicas enormes. Um jovem negro na periferia brasileira, na maioria das vezes, não chega aos 25 anos vivo ou em liberdade, e esta realidade se reflete em como precisamos lutar e na diferença social entre países latino americanos e europeus. Muitos punks são descendentes de indígenas ou de pessoas escravizadas que vieram do continente africano. Aqui existe uma luta para se manter vivo, além de qualquer outra coisa.

1º de maio de 1995. No cartaz, os retratos dos Mártires de Chicago de 1886, as origens do Primeiro de Maio como feriado anarquista.

1º de maio de 1995.

Banca de publicações no 1º de maio de 1995. “1º de maio é dia de protesto e não de festejo!”

Como os punks e anarquistas se relacionam com os movimentos autônomos dos anos 1990?

Com a volta do movimento anarquista às ruas e com uma politização anarquista com alguns grupos punks, houve uma aproximação com diversas lutas sociais e a necessidade de sermos uma ferramenta junto a diversos grupos que mantinham diversas lutas.

Quando o MST (Movimento Sem Terra) começou a expandir e ocupar fazendas foi muito inspirador, era uma ação direta na luta contra uma injustiça que é a quantidade de pessoas que não tem terra para produzir sua própria comida ou morar enquanto poucas pessoas detém estados inteiros de fazendas improdutivas. Explodiu também as ocupações de prédios abandonados nas grandes cidades, como feito pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) para que pessoas em situação de rua pudessem ter uma casa.

Estes dois movimentos foram como algo apaixonante para nós pois eram ações legitimas de um povo desprovido devido à sua história. Nos aproximamos em apoio e nas linhas de frente das manifestações inicialmente em solidariedade e em algum tempo alguns anarcopunks foram viver em ocupações do MSTS e em áreas do MST, fazendo parte efetiva destas lutas.

Nos anos 90 anarquistas e anarcopunks estavam lado a lado com muitas lutas, aprendendo, ensinando e apoiando. Grupos de apoio a lutas anti militaristas (objeção de consciência), grupo de apoio a presos e presas, Anarquistas Contra o Racismo, grupos anticapitalistas… Havia um sentimento de que os rebeldes que estavam em luta precisavam estar unidos.

Protesto antimilitarista em Curitiba, década de 1990.

Ato pela liberdade de Mumia Abu-Jamalem Curitiba, década de 1990.

No começo dos anos 2000 o movimento anti globalização chegou ao Brasil. Tinha uma base anarquista mas se alinhando a muitas outras lutas crescentes no país. Toda esta organização uniu diversas frentes anarquistas e algumas frentes de lutas sociais e, após diversos grupos de estudo se formou, a Ação Global dos Povos (AGP), uma movimentação radical anticapitalista que organizou diversas manifestações no Brasil. Enfrentou uma forte repressão policial mas também contou com muita força do lado rebelde.

Manifestação pelo Dia Internacional da Mulher, 8 de março, São Paulo .

Como a eleição de Lula afetou o terreno político em que você se organizava e os movimentos dos quais participava??

Antes de Lula ser eleito, iniciamos muitas conversas sobre a nossa posição em relação as eleições. Vínhamos fazendo propaganda do voto nulo desde a “redemocratização” e a primeira campanha eleitoral. Sentíamos que, em 1989, alguns grupos anarquistas e punks da região operária, região onde houveram muitas lutas sindicais e onde Lula vivia, tendiam a votar no Lula. Nas eleições seguintes havia um crescimento muito forte dos movimentos de esquerda e um apoio a candidatura do Lula pelo MST e MTST, além de outros movimentos populares. Estávamos interligados em vários grupos de luta mesmo estes que demonstravam apoio crescente a Lula, o que vimos até mesmo entre anarquistas. Neste momento, o movimento anarcopunk já não estava organizado da mesma forma que antes, muitos coletivos deixaram de existir e muitas pessoas foram para grupos de diversas lutas.

Em 2002 Lula se elegeu e havia uma esperança muito grande que ele apoiaria lutas sociais pelo Brasil. Muitos grupos sociais e coletivos de luta passaram a esperar por mudanças. Houve um período muito grande de estagnação social no Brasil. Muitos grupos se voltaram para debater problemas de base e se fortalecer enquanto necessidade de lutas especificas. Infelizmente, sentimos que isto nos enfraqueceu muito em um sentido de luta coletiva. Por exemplo, durante os governos do PT tivemos um dos menores números de demarcação de terras indígenas quando havia uma grande esperança de que isto fosse diferente. É como se tivéssemos dado uma pausa em muitas lutas.

“Nazista bom é nazista morto!” Punks Antifascistas em Belo Horizonte.

Protesto Anarcopunk em Belo Horizonte.

Qual o papel dos centros sociais na organização punk e anarquista no Brasil?

O Centro de Cultura Social (CCS) foi e é um dos principais centros sociais importantes no Brasil. Surgiram em 1933 e estão ativos até hoje e organizam palestras, encontros, todos os sábados. Além de grupos de teatro, também contam com um acervo histórico enorme. Muitos outros centros sociais surgiram unindo o anarquismo e o punk. Temos em Salvador, no nordeste brasileiro, o Quilombo Cecília, que se referia a Colônia Cecília, uma experiência anarquista no Brasil que unia o anarquismo, o punk e as lutas do povo preto. Havia a comuna Goulai Poulé, um centro cultural anarco punk em São Paulo, o Centro de Cultura social da Vila Dalva, tivemos o Centro Cultural O Germinal, o Espaço Improprio em São Paulo, um centro social que durou 8 anos e que unia anarquismo, punk, veganismo, feminismo, queer e serviu de base para muitos coletivos. Ainda nos anos 90 surgiram algumas casas ocupadas e algumas duram até hoje.

Documentário documentando os 10 primeiros anos de atividade da Casa da Lagartixa Preta, situada em Santo André/SP e gerida pelo coletivo Ativismo ABC.

E muitas casas de anarquistas se tornavam centros sociais onde as pessoas se encontravam para construir projetos, reuniões, vivências.

O capitalismo e as diferenças sociais enormes que existem no país são problemas que nos afetam muito e isto se reflete na realidade da história destes centros sociais que muitas vezes não conseguem se sustentar.

Anarcopunks em um protesto em junho de 1995.

Como a organização anarquista e os movimentos autônomos prepararam o palco para os poderosos movimentos de 2013 no Brasil?

Após a entrada do Partido dos Trabalhadores no poder, alguns benefícios foram alcançados, houve uma melhoria na qualidade de vida em algumas parcelas da população. Mas pontos realmente importantes de mudanças sociais nunca foram o plano do governo petista e isto foi ficando óbvio quando Dilma foi eleita presidente. Muito do que anarquistas alertavam antes das eleições foi sendo notado com o passar do tempo e o inconformismo de muitos setores sociais foi crescendo novamente. Movimentos como o MST e outros que não organizavam manifestações fazia anos, decidiram que era hora de mostrar sua insatisfação e que tinham muito para lutar. Neste levante dos movimentos sociais que já estavam havia mais de 10 anos esperando por algo prometido pelo Lula, o governo se empenhou em criminalizar os protestos e este ponto foi decisivo para que as manifestações que vinham acontecendo realmente explodir. Começou com a luta contra a tarifa de forma muito forte e muitas outras demandas vieram junto, o país entrou em combustão. Havia um povo ansioso por mudanças, mesmo sem uma unidade.

Por outro lado uma parcela ascendente, que veio a ser tornar uma classe média mais forte, se colocou ainda mais contra o povo pobre e da periferia. Parecia haver um movimento para barrar que este povo conseguisse sair do mar de lama que vivia, algo como um povo pobre contra o povo mais pobre e um ar de direita começou a ecoar nas manifestações. Mas os movimentos radicais estavam, mesmo que divididos em pequenos grupos de afinidade, articulados e as manifestações se seguiram tanto em 2013 quanto em 2014 antes e durante a Copa do Mundo.

Não acreditamos que estávamos realmente preparados para estas manifestações. Grupos e pessoas fizeram o que conseguiram, se articulando pouco a pouco, em uma tentativa de rede. Talvez um pouco antes do PT assumir o poder estivéssemos melhor preparadas, mas o período do PT no poder desarticulou algumas estratégias, as pessoas pareciam esperar para ver no que daria… e viram. Então acreditamos que erramos em não criar uma estrutura autônoma perante a existência do Estado, independente de qual partido está no poder.

Descreva o festival que vocês organizam, o No Gods No Masters fest.

O coletivo que fazemos parte, Cultive Resistência, tem diversas ferramentas de atuação. Uma delas é a editora/distro No Gods No Masters que edita e distribui livros, zines, discos.

Banda tocando no Espaço Cultural Semente Negra.

A ideia do festival surgiu quando tivemos a urgência em estar juntos em um local discutindo os assuntos que estão nos zines, nos livros e que impactam a vida das pessoas. Unindo música, palestras, oficinas, filmes, exposições, debates, em 3 dias em nossa casa, o Espaço cultural Semente Negra, que fica na floresta em uma cidade pequena, Peruíbe, no estado de São Paulo. A nossa proposta é reunir diversas formas de resistência e luta nestes dias, anarquismo, queer, feminismo, veganismo, a luta do povo preto e a luta indígena, punk, e outras propostas de lutas.

Temos alguns anarquistas pretos que apresentaram atividades no festival, trazendo suas realidades e expectativas para a coletividade mista. Onde vivemos existem muitas aldeias indígenas e temos um trabalho de apoio com eles desde 2012 e foi muito importante ter assuntos indígenas nas edições do festival. Eles trazem sua cultura, sua forma de ver o mundo, sua música, sua experiência com as ervas medicinais, sua forma de resistência pois são povos que existem enquanto resistência o tempo todo. Eles não tem podem escolher ser ou não a resistência, se deixarem de resistir morrem.

Professor de capoeira no festival No Gods No Masters no Espaço Cultural Semente Negra.

Oficina de grafite no No Gods No Masters Fest.

Oficina de serigrafia no No Gods No Masters Fest.

Como a eleição de Bolsonaro mudou o contexto político dos movimentos populares?

Houve um processo bastante complicado durante a campanha para presidentes em 2018, talvez a eleição mais violenta que já vimos. Alguns anarquistas optaram por votar em políticos contrários a Bolsonaro como uma estratégia de apoio a grupos de mulheres, pessoas pretas, indígenas, outras pessoas mantiveram a campanha do voto nulo e isto gerou uma discussão bastante complexa dentro do anarquismo brasileiro.

Após a eleição houve um certo pânico pois havia uma onda de violência de direita pelas ruas, algo que ainda está bem forte, mas também houve um reagrupamento de movimentos sociais. Grupos que estavam antes se organizando em coletivos de afinidades abriram mais espaço para unir forças e construir algo mais resistente. Muitas greves voltaram a acontecer pelo Brasil, muitas manifestações antifascistas e antirracistas. Acreditamos que as pessoas voltaram a entender que é preciso apoiar as lutas uns dos outros e não somente lutar por uma demanda especifica.

A Mata Atlântica no entorno do Espaço Cultural Semente Negra.

Qual é a situação dos indígenas sob Bolsonaro? Como os povos indígenas estão se organizando?

Talvez seja uma das piores épocas após a chegada dos europeus nas Américas. Existe uma legitimidade e impunidade quando se trata de questões criminais contra povos originários. Estão invadindo as terras indígenas, colocando fogo em suas florestas, assassinando suas lideranças, tirando seus direitos e promovendo o ódio popular contra indígenas.

Este é um plano organizado pelo governo Bolsonaro. Ao final de 2019 ele começou um processo de militarização da FUNAI [Fundação Nacional do Índio], órgão publico responsável por cuidar dos povos indígenas e da demarcação de terras. E imediatamente houve ocupações nos prédios da FUNAI contra esta militarização. Aqui em nossa região foram 28 dias ocupando o prédio com 300 indígenas que lutaram todos os dias contra isto e em outras cidades do Brasil também houve esta luta. Infelizmente os militares ocuparam os cargos da FUNAI e ela agora é comandada por eles. O órgão parou de dar suporte as famílias e a projetos sociais voltados as aldeias. Isto fez com que a luta se tornasse mais intensa e também mais perigosa principalmente, na Amazônia e estados onde existem muitas fazendas de gado. Existe uma luta nacional por sobrevivência e é importante que nós, rebeldes, estejamos ao lado desta resistência.

Manifestação dos Guaranis em prédio da FUNAI contra as políticas repressivas do regime de Bolsonaro.

Fale sobre os trabalhos de solidariedade em que vocês se organizam.

Utilizamos diversas ferramentas de luta e em busca de autonomia. Uma delas é a permacultura, que planeja ambientes sustentáveis e utiliza técnicas ecológicas para construir casas com terra e material local. Em 2012 fomos convidados para apoiar novas aldeias que estavam surgindo na nossa região em uma área que tinha sido dominada por uma mineradora que expulsou os povos indígenas Guaranis e explorou os recursos naturais por mais de 50 anos.

Neste primeiro momento começamos apoiando as construções das casas nas aldeias e com o tempo fomos nos envolvendo em diversas necessidades das famílias e suas lutas. O nosso papel principal é nos tornar uma ferramenta de apoio às necessidades e projetos das comunidades indígenas. Auxiliar no resgate da autoestima, trabalhar quebras de preconceitos, realizar eventos conjuntos visando a realização de sonhos das comunidades, mas, principalmente, estar juntos na resistência e luta.

Volunteers helping to construct houses in reclaimed Indigenous land adjacent to Espaço Cultural Semente Negra.

Estas famílias estão lutando por sua terra durante toda a vida, foram perseguidos pelos cristãos jesuítas, por fazendeiros, pela especulação imobiliária, por mineradoras e, desde 2000, ano da sua última retomada de terras, eles lutam para permanecer neste território, resgatando sua cultura e estilo de vida.

Nós os apoiamos nas suas lutas, nas construções das casas, no plantio, na construção das cozinhas comunitárias, em saneamento ecológico, em cursos e oficinas, em suas lutas contra o Estado, construindo tudo com relações horizontais e sempre partindo dos desejos da comunidade.

Anarcopunks ajudando a construir casas em territórios Guaranis retomados próximos ao Espaço Cultural Semente Negra.

Existem outros exemplos no Brasil de anarquistas e comunidades indígenas trabalhando juntas?

Existem pessoas que estão juntas nesta luta e alguns anarquistas que são netos de indígenas tem buscado viver dentro das aldeias e junto com suas lutas. Existem alguns grupos de apoio também, que trabalham conforme suas possibilidades com etnias em vários lugares do Brasil.

Agora com a pandemia isto se tornou mais efetivo e há uma articulação de federar grupos anarquistas que apoiam lutas indígenas, isto está em processo de formação.

Punks no festival No Gods No Masters, Espaço Cultural Semente Negra.

Participantes do No Gods No Masters Fest.

Quais os desafios do trabalho de solidariedade indígena?

No Brasil temos muitas lutas e precisamos estar atentos a diversas delas. Existem grupos de lutas específicas, que trabalham cada uma destas questões. Mas entendemos que é importante o apoio ao máximo de lutas para que não deixemos ninguém para trás. Com tantas lutas e uma economia decadente, há um desafio que é conseguir apoiar populações que vivem à beira da miséria ou em miséria absoluta pois já não conseguem mais manter seu estilo de vida. A vida das famílias indígenas é uma eterna luta por sobrevivência e na maioria das vezes é preciso fazer tudo com base na solidariedade e sem muitos recursos.

Falta de recursos, poucas pessoas para tantas frentes de luta, aliados a nossa luta por sobrevivência, são desafios enormes e ainda abraçar a luta indígena, que é a luta mais constante no Brasil, é nos desprender em tempo integral para minimizar os impactos da cultura ocidental, do capitalismo, sobre estas famílias.

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Existem linhas comuns que conectam suas experiências no movimento anarcopunk e comunidades indígenas?

Sim, existem conexões e semelhanças incríveis que fomos notando com o passar do tempo, vivendo próximo das comunidades. A rede de apoio mútuo, as assembleias, a importância da música como ferramenta de luta, a relação com a educação, as decisões por consenso, as viagens entre as aldeias, o cuidado um com o outro. Mas isto comparado ao punk que acreditamos e que queremos manter vivo em nossas vidas.

A principal diferença, em nossa opinião, é a relação com a natureza, com o planeta. Eles se sentem parte desta natureza como todos outros animais e plantas, enquanto nós, pessoas da civilização, tentamos nos desconectar disto tudo e criamos uma crise dentro e fora de nós.

“Aqui não há autoridade além de você mesmx.” No Gods No Masters Fest, Espaço Cultural Semente Negra in 2019.

Como as pessoas podem apoiar seus projetos e outros projetos anarquistas e indígenas importantes no Brasil?

Temos 3 projetos em que estamos muito focados. O espaço Semente Negra, que é o nosso centro social em meio à Mata Atlântica, onde temos experiências com permacultura, oficina de serigrafia, estúdio de gravação, nossa gráfica e nossa casa. Temos a No Gods No Masters que é nossa editora e distribuidora de materiais punks, anarquistas, feministas, veganos e outros materiais de luta. E também temos o projeto Vivência na Aldeia, que é o nosso projeto de apoio mútuo voltado com e para as comunidades indígenas.

Manter todos estes projetos é algo trabalhoso mas que faz parte das nossas vidas por muitos anos. É isto que somos e nisso que colocamos nossa energia. Por muitas vezes precisamos fazer um pouco de cada vez e escolher o que fazer agora ou o que fazer depois pois não temos dinheiro para tantas coisas. Tentamos fazer tudo que é possível fazer não envolvendo dinheiro. E isso também tem um significado muito importante. É onde praticamos coisas de forma mais pessoal, em relações de amor e amizade, é isto que buscamos construir em nossos projetos, em todos eles e com todas as pessoas que nos envolvemos.

Em tempos normais tentamos conseguir dinheiro para campanhas e projetos dentro das aldeias com eventos que organizamos, com venda de camisetas, sempre junto com as comunidades mas isto nunca é o suficiente para tantos problemas que existem nas aldeias e também para tantos lutas e sonhos.

Desde o início da pandemia de covid-19, em março de 2020, criamos uma loja online para ajudar a vender artesanatos para as famílias da aldeia, fazendo com que elas não precisem sair de suas aldeias para vender e mantendo as famílias vivendo e produzindo sua cultura e logo começamos a fazer uma campanha chamada Alimentação e Vida na Aldeia que visa a soberania alimentar das 11 aldeias da região, somando em torno de 500 indígenas. Infelizmente, como dissemos, a terra indígena fica em uma área devastada por uma mineradora e o plantio ainda é um grande desafio. Ainda assim, o projeto tem conseguido levar alimentos e informativos para as aldeias.

Precisamos de propaganda sobre a realidade das lutas no Brasil, sobre a realidade dos povos indígenas no país, precisamos apoio para muitos projetos dentro e fora das aldeias. A solidariedade, luta e apoio mutuo são nossas melhores armas.

Você pode saber mais sobre estes projetos pelos sites:

cultiveresistencia.org

nogods-nomasters.com

vivencianaaldeia.org


  1. Nos Estados Unidos, a palavra “libertário” foi apropriada por aqueles que só se preocupam com a liberdade de lucrar às custas dos outros e defender seus ganhos indébitos “sem regulação estatal”. Em qualquer lugar do mundo, palavra libertário significa exatamente o mesmo desde que foi criada: antiautoritário