Quase quatro milhões de pessoas fugiram da Ucrânia desde o início da invasão pelo Estado russo. Mas estas não são hoje as únicas a fugir de países devastados pela guerra. Desde 2021, o governo da Bielorrússia tem usado cinicamente milhares de pessoas deslocadas pelas guerras na Síria, Afeganistão, Iraque, Etiópia e outros lugares como arma para exercer pressão sobre a União Europeia. Os governos da União Europeia responderam de modo insensível, ao deixar estas pessoas presas no limbo entre duas fronteiras militarizadas e ao estabelecer uma zona restrita para garantir que observadores internacionais não as vejam morrer. Apesar disso, anarquistas se organizando na rede No Borders Team desafiam as restrições para prestar assistência às pessoas refugiadas em nome de um mundo sem fronteiras.
Você pode doar para apoiar os esforços da No Borders Team aqui.
_Para obter informações sobre os esforços de apoio mútuo na Polônia durante a pandemia do COVID-19, comece com este artigo. Para saber como os voluntários agem em solidariedade com os migrantes ao longo da fronteira entre os Estados Unidos e o México, leia este livro. Para a perspectiva dos migrantes, leia esta entrevista com exilados sírios.
Um conto sobre duas fronteiras
Nas últimas semanas, o governo polonês não poupou elogios a si mesmo por acolher os milhões de refugiados em fuga da invasão russa da Ucrânia e inúmeras pessoas na Polônia têm estendido a sua solidariedade às mães, crianças e idosos que todos os dia entram no país, com cidadãos comuns a oferecer transporte a quem chega às estações de comboio e a abrir voluntariamente as suas casas a desconhecidos. No entanto e há meses, na fronteira nordeste da Polônia, migrantes de todas as idades provenientes do Iraque, Síria, Afeganistão e outros países devastados pela guerra são deixados ao frio e à fome, sitiados entre a Polônia e a Bielorrússia. Num momento em que há mais pessoas refugiadas e deslocadas à força em todo o mundo do que em qualquer outro período da história, esta catástrofe evidencia o preconceito da União Europeia contra migrantes não brancos e representa um futuro em que os governos irão sistematicamente utilizar as populações deslocadas como armas para exercer influência política.
Ao mesmo tempo, na Polônia e em toda a Europa, coletivos anarquistas demonstram como podemos enfrentar um tal futuro, organizando-se em solidariedade com os migrantes do Médio Oriente e de África, apesar da atmosfera de medo, preconceito e violência.
8 de Novembro, 2021: “Recebemos notícias perturbadoras da fronteira. Guardas de fronteira bielorrussos empurraram 2.000 pessoas para o lado polonês. Há muitas crianças. Ouvimos relatos de que, de tempos em tempos, tiros são disparados sobre as cabeças dos refugiados para fazê-los se mover mais rápido. O exército polonês está montando barreiras armadas.”
Em meados de 2021, o Presidente da Bielorrússia Alexander Lukashenko atraiu pessoas que fugiam desesperadamente dos conflitos armados no Afeganistão, Síria, República Democrática do Congo, e outras partes da Ásia e de África, prometendo uma rota de migração segura para a União Europeia através da Bielorrússia. Ao chegar a Minsk, estas pessoas foram detidas por soldados bielorussos e forçadas a atravessar as fronteiras da Polônia, Lituânia e Letônia fora dos postos de controle oficiais.
Desde há mais de seis meses que milhares de mulheres, homens e crianças são tratados como peões numa luta de poder entre o governo de Lukashenko e a União Europeia, repetidamente forçados a entrar na UE em locais não autorizados e depois imediatamente empurrados de volta à Bielorrússia pelos guardas fronteiriços desses países. É negado a essas pessoas o acesso a abrigo, alimentação, tratamento médico e serviços jurídicos. Desde Fevereiro, pelo menos dezenove corpos de presumíveis migrantes foram encontrados nas florestas e pântanos ao longo da fronteira entre a Polônia e a Bielorrússia.
Desde os primeiros dias desta crise, uma rede de coletivos anarquistas polacos conhecida como No Borders Team (NBT) juntou-se aos residentes da zona fronteiriça para ajudar estes migrantes com alimentos, água, cobertores, cuidados médicos e outras necessidades através do apoio mútuo popular. Para a NBT, estes esforços fazem parte de uma missão de longa data para eliminar as fronteiras entre nações e contrariar os seus efeitos perniciosos.
“Assistimos a uma enorme explosão social na Polônia nas últimas semanas”, diz J, da NBT. “Milhares de pessoas acolheram famílias ucranianas sob o seu teto. Durante algum tempo, houve mesmo demasiadas pessoas que quiseram ajudar, como se com este grande movimento os polacos quisessem limpar a sua passividade em relação aos migrantes na fronteira bielorrussa. Estas famílias detidas continuam a ser atiradas para a floresta”.
Acredita-se que Lukashenko, presidente da Bielorrússia desde 1994, orquestrou a migração forçada com o objetivo de explorar as divisões na UE sobre a políticas migratórias e desestabilizar a região, como retaliação pela crítica dos governos da UE ao seu regime autoritário e pela imposição de sanções à Bielorrússia. Quando se declarou vencedor de um sexto mandato como presidente em 2020, a UE e numerosos países rejeitaram esse resultado devido à crença generalizada de que as eleições tinham sido manipuladas. A UE também impôs sanções econômicas em resposta às violações dos direitos humanos pelo governo de Lukashenko, incluindo forçar um voo de passageiros da Ryanair da Grécia para a Lituânia a aterrar em Minsk para prender um ativista da oposição em Maio de 2021. A economia bielorrussa é amplamente dependente da Rússia, o único país aliado de Lukashenko. Quando em 2020 os protestos se prolongaram por semanas, em resposta à reeleição fraudulenta de Lukashenko, o Presidente russo Vladimir Putin ofereceu-se para enviar o exército para reprimir a oposição. Em Julho de 2021, Lukashenko reagiu às sanções impostas pela UE após o incidente da Ryanair, ameaçando que o seu governo não impediria os imigrantes sem documentos de tentarem chegar à Lituânia através da Bielorrússia.
Surgiu uma evidente operação de tráfico humano, em que companhias aéreas e agências de viagens estatais promoveram “excursões” a preços reduzidos para a Bielorrússia em países como o Iraque, Turquia e Etiópia, anunciando a Bielorrússia como uma rota supostamente segura para a UE; ao mesmo tempo, funcionários bielorrussos emitiam mais vistos, flexibilizando as suas regras. Depois de transportados para a fronteira oriental da UE e colocados em bases militares, os migrantes receberam cortadores de arame e foram forçados pelos guardas bielorrussos a cortar vedações de arame farpado e a atravessar a fronteira fora dos postos de controlo oficiais. Em Outubro, o tráfico de migrantes nas fronteiras da Bielorrússia com a UE era da ordem dos milhares. No entanto, em Novembro de 2021, Lukashenko alegou que as autoridades bielorrussas tinham simplesmente deixado de impedir os migrantes de chegar à fronteira da UE, em vez de reconhecer que os convidou.
Embora os governos ocidentais tenham acusado Lukashenko de usar estas pessoas como armas num “ataque híbrido” contra a UE, Putin defendeu as acções do Presidente bielorrusso, como tem feito frequentemente. A influência da Rússia sobre a Bielorrússia ficou demonstrada em Fevereiro pelo facto de as tropas russas terem sido autorizadas a usar a Bielorrússia como base para a invasão da Ucrânia.
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A No Borders Team suspeita que a utilização estratégica de refugiados por Lukashenko para desestabilizar a UE tem estado ligada às maquinações de Putin contra a Ucrânia. “Desde o início, a nossa atividade na fronteira com a Bielorrússia tem estado relacionada com a situação política na Ucrânia”, diz J. “Estávamos conscientes de que uma das razões para as ações das autoridades bielorrussas poderia ser a desestabilização da situação na região, com o objectivo de facilitar as operações militares russas na Ucrânia. Ninguém tinha a certeza de que tal ataque aconteceria, e a escala da agressão surpreendeu certamente a maioria de nós, mas vimos a utilização instrumental da tragédia humana na fronteira como parte do jogo de poder em Moscou”.
Mas a tragédia resultante deste jogo de poder é também o resultado da estratégia que o governo polaco adotou em resposta. Numa tática vulgarmente conhecida como “pushback”, guardas fronteiriços, soldados e polícias polacos agrupam as pessoas que conseguem atravessar a fronteira e forçam-nas imediatamente a reentrar na Bielorrússia fora dos postos fronteiriços oficiais, sem lhes dar a oportunidade de requerer o estatuto de refugiado. Embora o governo polaco tenha alterado os regulamentos para o permitir e o parlamento tenha aprovado uma lei em Outubro supostamente legalizando estas expulsões, a prática viola claramente o direito internacional e o Europeu, ao negar às pessoas o direito de requerer asilo.
Em Novembro, a guarda fronteiriça Polaca escalou a sua violência contra migrantes, disparando canhões de água e gás lacrimogêneo. Muitas das pessoas que são apanhadas depois de entrarem na Polônia são mantidas em centros de detenção, muitas vezes durante meses a fio. Num centro em Wędrzyn, os migrantes detidos organizaram dois protestos contra a fome e as condições aí existentes. A NBT inclui equipas que fornecem artigos essenciais às pessoas detidas nestes campos e, em alguns casos, ajudam quem pretende pedir asilo com assistência jurídica.
Em 2 de Setembro de 2021, o Presidente polaco Andrzej Duda declarou estado de emergência em algumas áreas de Podlaskie e Lubelskie, na fronteira com a Bielorrússia. O estado de emergência estabelece uma zona de três quilômetros ao longo da fronteira, onde ninguém está autorizado a entrar, incluindo jornalistas, organizações não governamentais e observadores independentes. Qualquer pessoa que entre na zona restrita para prestar ajuda humanitária corre o risco de ser presa ou multada. “Desde que a zona foi estabelecida, no início de Setembro, nunca mais nenhum médico lá pode entrar”, diz D. “Mesmo que alguém esteja a morrer na floresta, os soldados na fronteira não deixam entrar ninguém”. Enquanto os guardas afastam ONGs como a Médicos Sem Fronteiras, alguns médicos puderam entrar na zona fronteiriça sem serem detectados, para tratar migrantes que sofriam de hipotermia e ferimentos resultantes dos violentos ataques dos guardas polacos e bielorrussos.
“No silêncio da noite, alguém está morrendo na floresta.” Véspera de Natal, 2021.
F, da No Borders Team, diz que quase todos os participantes da rede foram treinados em primeiros socorros. Normalmente, quando encontram pessoas que pediram ajuda na floresta, abordam primeiro as suas necessidades médicas, depois dão-lhes algo quente para comer e beber. “Dependendo da pessoa”, diz ela, “às vezes apenas ajudamos com uma muda de roupa e depois vamos embora, porque eles têm planos, mas às vezes passamos um pouco mais de tempo. Sentamo-nos, partilhamos cobertores, partilhamos o frio. Bebemos chá e ouvimos as suas histórias, e eles mostram-nos as fotografias dos seus filhos e das suas famílias nos telefones”. F conheceu muitas pessoas interessantes na zona fronteiriça, incluindo alguns militantes organizados nos seus países de origem e que agora se encontram do outro lado desse processo na UE.
D diz ter encontrado várias pessoas em tão más condições que tinham medo de morrer. Embora os membros da No Borders Team ainda não tenham visto mortes no seu trabalho, encontraram pessoas que foram severamente espancadas, incluindo algumas crianças, e mulheres que foram repetidamente violadas, na maioria dos casos por soldados bielorrussos, mas também polacos. “É espantoso como conseguem sobreviver”, diz, notando que alguns migrantes não tinham qualquer preparação para o terreno e o clima da região, sendo oriundos do Médio Oriente. A equipa ofereceu lonas, mapas, sacos cama, roupa nova e por vezes ajuda para construir um abrigo temporário.
As pessoas que vivem na zona de “estado de emergência” ao longo da fronteira foram quem primeiro respondeu à crise. “Uma grande parte da ajuda àqueles que ficaram presos na floresta, após o estabelecimento da zona de interdição, foi prestada por habitantes locais”, diz F. Apesar de viverem sob a constante ameaça dos militares que patrulham a zona em helicópteros, muitos residentes arriscaram-se desde o início a ser detidos, aventurando-se na floresta para levar ajuda aos migrantes ali abandonados e tentando continuamente ajudar aqueles que estavam presos nos centros de detenção.
D fala sobre as ligações que através do trabalho conjunto se formaram entre organizadores anarquistas e residentes locais. “Para nós foi realmente impressionante ver a organização da população local, porque a Polônia é um país muito conservador”. Muitos, diz ele, passaram a partilhar a opinião da NBT sobre o governo, depois de verem pessoas a morrer na floresta.
Proibir os media de entrar na zona fronteiriça permitiu aos guardas operar “como cowboys”, de acordo com F. “Eles podem fazer tudo”, diz. “Ninguém os pode ver, ninguém os pode julgar, e ninguém jamais saberá”.
“Há alguns polícias à paisana que nos seguem”, diz J. O grupo acredita que a polícia conhece a localização da sua base, onde se encontram e armazenam os artigos que distribuem. J diz que estão a tomar muitas medidas de segurança, no entanto. Embora prefira não entrar nos pormenores sobre como os voluntários da No Borders Team realizam as suas ações, salienta a importância de se tratar de uma rede grande e de poderem partilhar facilmente informação uns com os outros. Os migrantes sitiados na floresta sabem como contactá-los e como partilhar as suas localizações, o que permite aos membros da rede responder aos pedidos de ajuda. Aqueles que respondem a estas chamadas viajam em grupo e olham uns pelos outros.
Talvez a diferença mais gritante entre as respostas do governo polaco às duas crises, salienta F, é que ajudar os refugiados da Ucrânia não é criminalizado. “Para apoiar as pessoas da Ucrânia não precisas de te esconder dos serviços polacos na floresta, não tens de fechar as cortinas em casa por teres dado abrigo a um refugiado, não tens a preocupação de a polícia ou as forças de defesa territorial te atirarem para o chão, de te intimidarem porque foste ao encontro de pessoas em movimento com sopa e um casaco quente”.
“Embora estejamos impressionados com a escala da ajuda prestada pelos polacos, não podemos deixar de notar que se trata de uma ajuda seletiva”, diz J. “Enquanto as mães ucranianas com filhos podem contar com apoio, homens e pessoas com diferentes cores de pele têm muito mais dificuldades. É claro que este não é apenas um problema polaco, pois muitas organizações da Europa Ocidental recusam-se a acolher pessoas não brancas.”
Os participantes da No Borders Team consideram que a razão pela qual a crise resultante da invasão da Ucrânia eclipsou a crise na fronteira nordeste não é apenas a sua escala, mas também a distância psicológica que muitos polacos sentem relativamente aos migrantes que tentam entrar no país através da Bielorrússia – uma atitude fomentada pelos interesses do Estado e do capital. “A invasão russa da Ucrânia é para a sociedade polaca mais visível, perceptível e menos complicada do que os bombardeamentos na Síria, Iraque, ou Iémen”, diz F. “Para eles é mais fácil reconhecer que se trata de refugiados de guerra que precisam de ajuda. Foi assim que a propaganda do Estado polaco funcionou.”
Enquanto prossegue o seu trabalho na fronteira entre a Polônia e a Bielorrússia, a NBT tem demonstrado a mesma solidariedade para com as pessoas expulsas das suas casas na Ucrânia. “Desde o início da guerra, as pessoas associadas à No Borders Team estiveram presentes na fronteira com a Ucrânia”, diz D, “primeiro ao envolverem-se na ajuda imediata, como a cozinha fronteiriça, organizada por coletivos Food Not Bombs de toda a Polônia, ou no transporte de pessoas. Ao longo do tempo, fomos desenvolvendo atividades mais coordenadas. Em conjunto com companheiros na Ucrânia, organizámos transportes da Polônia para a Ucrânia, e o transporte direto de pessoas em fuga da guerra para a Polônia.”
“O caos e a confusão em torno desta situação estão lentamente a estabilizar, pelo que vão surgindo oportunidades para uma ação organizada”, diz D. “Amigos de diferentes seções viajam para a fronteira e ajudam na divisão e classificação de remessas, cozinhando, transportando; organizamos entregas de mantimentos e dinheiro. Trabalhamos com um grupo anarquista que luta nas proximidades de Kyiv, apoiamo-los com mantimentos. Foi também criada uma base para onde pessoas do nosso ambiente podem vir. Estamos neste momento a angariar fundos para um caminhão de distribuição que poderá operar na Ucrânia.”
Quanto à forma como o Estado polaco tem funcionado em resposta ao fluxo de refugiados ucranianos, diz J, “basta dizer que não funciona. Contudo, para nós, como anarquistas, esta frase não é particularmente reveladora. Praticamente toda a ajuda dada às vítimas desta guerra é organizada a partir de baixo. Milhões de pessoas dedicam o seu tempo, trabalho e dinheiro. Já o governo limita-se dar a conferências de imprensa. Desde o início da guerra, não foi criada nenhuma política coerente para ajudar os refugiados”. Enquanto o governo polaco constrói um muro de 353 milhões de euros ao longo da sua fronteira com a Bielorrússia, apesar da oposição feroz de defensores dos direitos humanos e do ambiente, os participantes da NBT veem esta abordagem reativa como um símbolo da completa ausência de uma política viável em matéria de migração.
Como explica F, “os voluntários e residentes na fronteira, que operam entre a Polónia e a Bielorrússia há mais de meio ano, também aproveitam este momento para enfatizar que todos os refugiados podem vir para a Polônia e podem encontrar aqui o seu lugar para viver, ou um porto seguro nas suas viagens futuras. Independentemente de documentos ou nacionalidade”.
Enquanto o governo bielorrusso começa a transportar migrantes detidos de regresso a Minsk, para serem repatriados para os países para onde fugiram, centenas ainda permanecem na zona fronteiriça. O contínuo trabalho da NBT para ajudar os migrantes ainda lá encurralados é apenas uma parte da sua missão de mudar a política de migração na União Europeia e para além dela. Consideram que abrir fronteiras e trabalhar em conjunto é a única forma de nos prepararmos para o que nos espera, uma vez que cada vez mais pessoas são deslocadas das suas casas devido à guerra, convulsões políticas, crises econômicas e catástrofes ecológicas. O coletivo na Polônia faz parte de uma rede mais vasta, trabalhando com grupos No Borders na Alemanha, França, Itália, República Checa e Reino Unido.
Uma foto da manifestação em Krosno Odrzańskie em 12 de fevereiro de 2022, tirada por Agata Kubis.
“Temos uma situação diferente dos grupos fora da Polônia”, diz D. “Isto deve-se ao facto de nenhum destes grupos entrar na zona restrita e trabalhar em condições tão difíceis: longas viagens através da floresta e de pântanos, com temperaturas extremamente baixas. Polacos e lituanos são forçados a empenhar-se em salvar vidas numa zona restrita, algo que é criminalizado nestes países”. No dia 23 de Março, quatro voluntários que prestavam ajuda humanitária a uma família na fronteira da Polónia com a Bielorrússia foram detidos por suspeita de tráfico de pessoas.
Face a esta adversidade, o movimento No Borders continua a promover a ideia de que as crises fronteiriças não são causadas por migrantes, mas sim pelo sistema de divisão geopolítica em Estados-nação. “Acima de tudo”, diz J, “precisamos de fazer aquilo que o movimento No Borders tem vindo a fazer desde há anos – apoiar as pessoas em movimento em todos os sentidos. Precisamos de criar redes de apoio, abrir casas seguras, mostrar o caminho, fazer uma resistência concreta e diária às fronteiras.”
“Paradoxalmente, a situação na Ucrânia revelou-nos a facilidade com que a entreajuda é prestada face às ameaças das fronteiras estatais”, diz D. “A eliminação de estruturas autoritárias é apenas um dos fatores que favorecem a abertura das fronteiras”. Na No Borders Team acredita-se que outros passos importantes para um mundo sem fronteiras incluem o desenvolvimento de um plano de desmilitarização gradual, o reforço de programas pró-ecológicos, a distribuição e redistribuição justa dos recursos, o trabalho para erradicar a pobreza e a fome, a promoção de atitudes éticas e a construção de uma rede de estruturas locais autogeridas.
“Há muito por fazer e tudo o que temos a perder são nossas próprias fronteiras”, diz D.
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História de um refugiado
O seguinte relato apareceu na página Facebook da No Borders Team, a 23 de Fevereiro de 2022.
In order to give a voice to those the world does not want to hear, we publish the story of a person who decided to take a huge risk and set off on his way to Europe:
«Sou da Síria, tenho 33 anos de idade e sou engenheiro. Deixei a Síria há cerca de nove anos e viajei para o Líbano – entre outras razões, por problemas de estômago que tive de tratar. Um dia, alguém me disse:
“Se quiser ir para a Europa, há uma maneira fácil. Basta dares-me dinheiro e eu dou-te um bilhete e um visto para a Bielorrússia, depois podes ir para qualquer lado. É muito simples”…
Não quero voltar para a Síria, por causa da guerra e da minha religião. Se eu disser qual é a minha fé, eles podem matar-me. Há um ramo do cristianismo na Síria que poucas pessoas professam. Em 2018, o ISIS atacou a minha aldeia e matou cerca de 300 pessoas: crianças, mulheres, e homens.
…E foi assim que eu dei a este homem 4000 dólares para que me conseguisse um visto e uma reserva de hotel. Apanhámos um voo direto do Líbano para Minsk. Quando o nosso grupo de oito pessoas chegou, um homem veio ter conosco, deixou-nos num hotel e disse que precisávamos de um bom descanso durante dois dias. Ele também disse:
“Se quiserem ir para a Europa, têm de pagar 3000 euros em dinheiro. Um carro leva-os até à fronteira, andarão um ou dois quilômetros a pé e no outro lado (da fronteira) haverá um carro à espera para vos levar para onde quiserem. Alemanha, Bélgica… “.
É possível que todos sejamos estúpidos, porque acreditámos nele.
Passados dois dias, o carro chegou realmente e levou-nos até à fronteira. Mas não faltavam dois quilômetros, eram cerca de 30. Como não podíamos voltar para trás, decidimos embarcar nesta viagem terrível. Caminhámos durante cerca de três dias. Uma pessoa do grupo tinha um telefone com internet. Um homem, não me lembro do seu nome, deu-nos indicações: “ir por aqui… depois por ali…” Quando chegámos à barreira na Bielorrússia, não havia maneira de passar. O homem disse que tínhamos de encontrar um buraco, mas não conseguimos, por isso passámos por baixo da vedação. Depois caminhámos durante cerca de 20 horas na floresta e chegámos a uma cidade. O homem que indicava o caminho continuava a dizer: “É preciso andar 5 quilômetros aqui, 6 quilômetros ali, 5 quilômetros de novo, 12 quilômetros…” e assim sucessivamente.
Quando chegámos ao último ponto, já era outro dia. Ali, a polícia polaca apanhou-nos. Deram-nos água e nada disseram, exceto que tínhamos de voltar para a Bielorrússia. O guarda levou-nos até à fronteira. Mais tarde, do outro lado, fomos apanhados por um soldado bielorrusso. Dissemos que queríamos regressar a Minsk, Iraque, Síria, a qualquer lugar. O soldado riu-se e disse:
“Não vão voltar para Minsk. Morrerão mais cedo. Têm duas opções: podem morrer aqui ou tentar ir para a Polônia.”
E juntaram-nos, oito pessoas, a outro grupo, formando um grupo de cerca de 200 pessoas, num acampamento, mas sem nada com que sobreviver. Não nos deram água nem comida. Disseram-nos:
“Vocês não são humanos. Vocês são animais.”
Ficámos lá durante cinco dias. Todos os dias pedimos água. Não a recebemos. Um soldado vinha e dizia que, se quiséssemos água, podia dar-nos por 100 dólares a garrafa [sic]. Esta água não era própria para uma pessoa beber; era verde, de uma poça. Mas não se pode viver sem água… por isso paguei-lhe todos os dias. Um dia, os soldados roubaram o powerbank do meu amigo e um maço de cigarros, e o telefone de outra pessoa. Eles agiam como a máfia.
Não sei porque nos usam como propaganda. Juntavam-nos todas as noites e levavam-nos para a fronteira com a Polônia. Eles (“segurança” bielorrussa) escondiam-se entre as pessoas, vestindo roupas civis. Pegavam em pedras e atiravam-nas para o lado polaco, gritando “Yalla” ao mesmo tempo, para fazer os outros acreditarem que os árabes estavam a atirar pedras. Eram provocações. Quando não conseguimos ultrapassar a cerca polaca, eles bateram-nos e disseram:
“Têm de ir!”
Passados cinco dias, fomos apanhados e levados para outro lugar. Um soldado bielorrusso cortou a vedação para que pudéssemos ir para a Polônia. Caminhámos cerca de cinco dias sem água nem comida. Dormimos na neve, estávamos exaustos. No final, os meus companheiros e eu decidimos ir pela estrada principal porque já não nos importava o que nos aconteceria, estávamos tão cansados…
Passado algum tempo, uma mulher num carro parou. Dissemos-lhe apenas:
“Por favor, ajude-nos.”
Ela levou-nos, mas passados quinze minutos a polícia parou o carro num posto de controlo.
Eu caí no chão e disse:
“Por favor, levem-me para o hospital”.
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Levaram-me para um lugar onde trabalhava um médico Curdo, um homem muito bom. Falou-nos das organizações solidárias que prestam apoio, deu-nos os papéis que seria preciso assinar.
Não podemos voltar para a Bielorrússia. Se querem matar-nos na Polónia, façam-no, não queremos saber. Mas nós não queremos voltar para a Bielorrússia.
Finalmente, pessoas do vosso grupo [No Borders Team] vieram ao hospital e protegeram-nos. E graças a Deus por essa ajuda. Após dois dias no hospital, os guardas levaram-nos à esquadra para tratar dos documentos e deixaram-me num espaço aberto.
Esta é a minha história. Tenho visto coisas muito, muito más.
Vi um homem a morrer ao meu lado na floresta e não havia nada que eu pudesse fazer.
Se tivesse de escolher entre a vida e a Europa, escolheria a vida.
Tenho sorte por ter conhecido pessoas como vocês, que sabem o que é a humanidade.»